Antônia Izanira Lopes de Carvalho - Patrono: José Martiniano de Alencar
Ao surgirem como nova geração, os escritores da Década de Trinta foram considerados como o grupo de ouro da Literatura Brasileira. Todos, sem exceção, revitalizaram a cultura, dando ao leitor a opção de conhecer a denúncia sobre o estado de coisas existentes no País, no governo ditatorial de Getúlio Vargas. Suas obras constituem-se ainda como retratos de um Brasil esquecido, com o Nordeste e sua miséria pela constância da seca. Rachel de Queiroz pertence ao grupo desses privilegiados mensageiros. A fim de se entender melhor sua obra, três aspectos devem ser considerados, por serem fundamentais para o estudioso dessa autora cearense. A tese a ser estabelecida é a de que Rachel de Queiroz registra a vida, a mulher e sua coragem, além de documentar a terra e suas raízes.
A primeira obra publicada data de 1930. É “O Quinze”, a mais lida e comentada de sua vasta bibliografia. Obra telúrica, aborda a terra das caatingas. Mostra o desafio do homem que luta contra os efeitos da estiagem nordestina. Ai é registrada a pobreza de Chico Bento e seus filhos fugindo do sol, bem como Vicente, socialmente colocado acima da fome, figura quase mítica, que desafia a adversidade, enfrentando a natureza castigada pelo sol. O telúrico, o amor às raízes do Nordeste são tão fortes que há simbiose perfeita entre homens, vegetação e os animais. A humanização dos inanimados é tangível: “o próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões e lama ressequida, cortada, aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas.” (p.20)
Também os animais se humanizam: “E apontava para uma vaca pintada de preto e branca que, magra e quieta à beira da estrada, parecia esperar a família fugitiva para uma derradeira despedida. (...) Rendeira fitou em todos os seus grandes olhos dolorosos, donde escorria uma lista clara sobre o focinho escuro, como um caminho de lágrimas.” O crudelismo se expressa na animalização de homens que disputam carne podre com os urubus: “Realmente, a vaca já fedia, por causa da doença. (...) era uma festa para os urubus vê-la lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens...’’ (p. 36)
O segundo momento do livro é a luta urbana com Conceição, a professora que nasceu para ser mãe e que adota Duquinha como se dela fosse. Prima e amada de Vicente dele se separa pela racionalidade encontrada nos livros franceses. “O Quinze” refere-se à seca de 1915 que historicamente foi registrada como uma das maiores do Ceará: milhares de retirantes refugiavam-se num campo em Fortaleza, fugindo da fome e da seca. Multidões cansadas assemelhavam-se a ocupantes de um campo de concentração. Havia corrupção e só se salvava quem tivesse um dedo político indicador: “... a perversidade de uma seca entregara aos azares da estrada e à promiscuidade miserável dum abarracamento de flagelados. ”( p. 95)
A segunda grande marca da obra de Rachel de Queiroz é a mulher. Ela se encontra em todos os seus livros. São de todos os matizes, mas se caracterizam pela fortaleza; são guerreiras, voluntariosas, desafiando a região e a época machista em que viviam. Numa sociedade em que só havia três caminhos para a mulher: casamento, convento ou prostituição, elas foram capazes de feitos que desafiassem o homem pela coragem e inteligência. Seus nomes são simbólicos, guardando sua personalidade. Pode-se afirmar que cada uma traz uma parcela da escritora. São o alter ego de Rachel que ousou em seu tempo ser comunista, enfrentar a prisão. Separou-se numa época em que moças de família não se separavam. Ela o fez e ainda foi morar com o grande amor de sua vida: para escândalo da tradicional sociedade cearense. Quem sabe não é a memória ancestral que ditou suas criações? Afinal, uma de suas tetravós foi a revolucionária, Bárbara de Alencar, que lutou em prol da República tendo sido presa e torturada, ao defender seus ideais de liberdade e igualdade.
“A mulher forte de Rachel encontra-se na militante comunista Noemi em “Caminho de Pedras” O seu vago amor por todos os homens, os sujos e limpos, brancos e pretos, a velhinha agarrada no cacete, o menino triste que não podia entrar no cinema, coisas que sempre escondera, como sentimentalismo pueril... Seus ansiosos desejos de adolescente, a que o casamento decepcionara, cortara as asas” (p.46) É a Doralina de “Dora, Doralina”, metaforicamente sublinhada como a mulher que teve a sina da dor ao se ver traída pela mãe e que de menina tímida e insegura foi capaz de varar meio Brasil pelo amor do seu Capitão. Também a encontramos no livro de “As três Marias,” principalmente em Maria Augusta que desafiou a sociedade ao perder a virgindade e se vê como mãe solteira. Para finalizar sua galeria feminina, há a personagem Maria Moura: a que sabia amar e matar. Moura lembra, etimologicamente, a variável do significado provindo da Península Ibérica: Moura de Mourão, aquele que sustenta, que trabalha, que assegura fortaleza às partes mais fracas. E assim é Maria Moura, lutando o amando em seu “cubico”. A mulher de Rachel é a Santa em João Miguel, contraditória diante da desgraça; é a Filó que sustenta com seu prato de comida o prisioneiro miserável; é Angélica capaz de sair de seu mundo aristocrático pelo amor ao pai.
A temática assim visualizada nessas três vertentes leva-nos a encontrar outro veio que merece estudo: o estilo de Rachel. Como todo realista, ela ama a concisão e não abandona seus vocábulos regionalistas. A linguagem é afetiva, comprovando-se pela quantidade de diminutivos. A preferência pelo gerúndio é uma herança do francês, idioma que dominava perfeitamente. Além disso, os diálogos são vivos, a adjetivação é precisa e há trechos expressionistas, ricos em cores e traços. Seu romance apresenta-se narrado em terceira ou primeira pessoa, este último muito observado na obra de Maria Moura, rico em digressões e ações internas.
Rachel de Queiroz, a cearense dividida entre o sítio “Não me deixes” e Niterói, cidade que viu crescer e que lhe deu inspiração para escrever “Galo de Ouro”, morreu dormindo em sua rede, e se encantou, na viagem derradeira em busca das raízes de seu mundo imaginário, onde o amor, a liberdade e a dignidade fizeram nascer uma nova mulher. O Ceará dos Verdes Mares ganhou uma nova jandaia que canta na eternidade de seus livros.
Dados bibliográficos:
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 62 ed. Rio de janeiro: Siciliano, 1993.
QUEIROZ, Rachel de. Caminhos de Pedra. 55 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
QUEIROZ, Rachel de. As Três Marias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939.
QUEIROZ, Rachel de. Memorial de Maria Moura. 2 ed. São Paulo: Rio de Janeiro: Siciliano, 1992.
QUEIROZ, Rachel de. Dora, Doralina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
QUEIROZ, Rachel de. João Miguel. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
CHEVALIER, Jean e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
Ao surgirem como nova geração, os escritores da Década de Trinta foram considerados como o grupo de ouro da Literatura Brasileira. Todos, sem exceção, revitalizaram a cultura, dando ao leitor a opção de conhecer a denúncia sobre o estado de coisas existentes no País, no governo ditatorial de Getúlio Vargas. Suas obras constituem-se ainda como retratos de um Brasil esquecido, com o Nordeste e sua miséria pela constância da seca. Rachel de Queiroz pertence ao grupo desses privilegiados mensageiros. A fim de se entender melhor sua obra, três aspectos devem ser considerados, por serem fundamentais para o estudioso dessa autora cearense. A tese a ser estabelecida é a de que Rachel de Queiroz registra a vida, a mulher e sua coragem, além de documentar a terra e suas raízes.
A primeira obra publicada data de 1930. É “O Quinze”, a mais lida e comentada de sua vasta bibliografia. Obra telúrica, aborda a terra das caatingas. Mostra o desafio do homem que luta contra os efeitos da estiagem nordestina. Ai é registrada a pobreza de Chico Bento e seus filhos fugindo do sol, bem como Vicente, socialmente colocado acima da fome, figura quase mítica, que desafia a adversidade, enfrentando a natureza castigada pelo sol. O telúrico, o amor às raízes do Nordeste são tão fortes que há simbiose perfeita entre homens, vegetação e os animais. A humanização dos inanimados é tangível: “o próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões e lama ressequida, cortada, aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas.” (p.20)
Também os animais se humanizam: “E apontava para uma vaca pintada de preto e branca que, magra e quieta à beira da estrada, parecia esperar a família fugitiva para uma derradeira despedida. (...) Rendeira fitou em todos os seus grandes olhos dolorosos, donde escorria uma lista clara sobre o focinho escuro, como um caminho de lágrimas.” O crudelismo se expressa na animalização de homens que disputam carne podre com os urubus: “Realmente, a vaca já fedia, por causa da doença. (...) era uma festa para os urubus vê-la lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens...’’ (p. 36)
O segundo momento do livro é a luta urbana com Conceição, a professora que nasceu para ser mãe e que adota Duquinha como se dela fosse. Prima e amada de Vicente dele se separa pela racionalidade encontrada nos livros franceses. “O Quinze” refere-se à seca de 1915 que historicamente foi registrada como uma das maiores do Ceará: milhares de retirantes refugiavam-se num campo em Fortaleza, fugindo da fome e da seca. Multidões cansadas assemelhavam-se a ocupantes de um campo de concentração. Havia corrupção e só se salvava quem tivesse um dedo político indicador: “... a perversidade de uma seca entregara aos azares da estrada e à promiscuidade miserável dum abarracamento de flagelados. ”( p. 95)
A segunda grande marca da obra de Rachel de Queiroz é a mulher. Ela se encontra em todos os seus livros. São de todos os matizes, mas se caracterizam pela fortaleza; são guerreiras, voluntariosas, desafiando a região e a época machista em que viviam. Numa sociedade em que só havia três caminhos para a mulher: casamento, convento ou prostituição, elas foram capazes de feitos que desafiassem o homem pela coragem e inteligência. Seus nomes são simbólicos, guardando sua personalidade. Pode-se afirmar que cada uma traz uma parcela da escritora. São o alter ego de Rachel que ousou em seu tempo ser comunista, enfrentar a prisão. Separou-se numa época em que moças de família não se separavam. Ela o fez e ainda foi morar com o grande amor de sua vida: para escândalo da tradicional sociedade cearense. Quem sabe não é a memória ancestral que ditou suas criações? Afinal, uma de suas tetravós foi a revolucionária, Bárbara de Alencar, que lutou em prol da República tendo sido presa e torturada, ao defender seus ideais de liberdade e igualdade.
“A mulher forte de Rachel encontra-se na militante comunista Noemi em “Caminho de Pedras” O seu vago amor por todos os homens, os sujos e limpos, brancos e pretos, a velhinha agarrada no cacete, o menino triste que não podia entrar no cinema, coisas que sempre escondera, como sentimentalismo pueril... Seus ansiosos desejos de adolescente, a que o casamento decepcionara, cortara as asas” (p.46) É a Doralina de “Dora, Doralina”, metaforicamente sublinhada como a mulher que teve a sina da dor ao se ver traída pela mãe e que de menina tímida e insegura foi capaz de varar meio Brasil pelo amor do seu Capitão. Também a encontramos no livro de “As três Marias,” principalmente em Maria Augusta que desafiou a sociedade ao perder a virgindade e se vê como mãe solteira. Para finalizar sua galeria feminina, há a personagem Maria Moura: a que sabia amar e matar. Moura lembra, etimologicamente, a variável do significado provindo da Península Ibérica: Moura de Mourão, aquele que sustenta, que trabalha, que assegura fortaleza às partes mais fracas. E assim é Maria Moura, lutando o amando em seu “cubico”. A mulher de Rachel é a Santa em João Miguel, contraditória diante da desgraça; é a Filó que sustenta com seu prato de comida o prisioneiro miserável; é Angélica capaz de sair de seu mundo aristocrático pelo amor ao pai.
A temática assim visualizada nessas três vertentes leva-nos a encontrar outro veio que merece estudo: o estilo de Rachel. Como todo realista, ela ama a concisão e não abandona seus vocábulos regionalistas. A linguagem é afetiva, comprovando-se pela quantidade de diminutivos. A preferência pelo gerúndio é uma herança do francês, idioma que dominava perfeitamente. Além disso, os diálogos são vivos, a adjetivação é precisa e há trechos expressionistas, ricos em cores e traços. Seu romance apresenta-se narrado em terceira ou primeira pessoa, este último muito observado na obra de Maria Moura, rico em digressões e ações internas.
Rachel de Queiroz, a cearense dividida entre o sítio “Não me deixes” e Niterói, cidade que viu crescer e que lhe deu inspiração para escrever “Galo de Ouro”, morreu dormindo em sua rede, e se encantou, na viagem derradeira em busca das raízes de seu mundo imaginário, onde o amor, a liberdade e a dignidade fizeram nascer uma nova mulher. O Ceará dos Verdes Mares ganhou uma nova jandaia que canta na eternidade de seus livros.
Dados bibliográficos:
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 62 ed. Rio de janeiro: Siciliano, 1993.
QUEIROZ, Rachel de. Caminhos de Pedra. 55 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
QUEIROZ, Rachel de. As Três Marias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939.
QUEIROZ, Rachel de. Memorial de Maria Moura. 2 ed. São Paulo: Rio de Janeiro: Siciliano, 1992.
QUEIROZ, Rachel de. Dora, Doralina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
QUEIROZ, Rachel de. João Miguel. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
CHEVALIER, Jean e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
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