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  1. O QUINZE – RACHEL DE QUEIROZ

    quinta-feira, 18 de agosto de 2011

    Maria Bernadete de A. Brito - Patrono: Gregório de Matos Guerra

    O Quinze de Rachel de Queiroz provocou enorme impacto nos anos trinta e atravessou o tempo como referência obrigatória na história da nossa literatura. Foi o marco em que a autora, nos seus vinte anos já se equiparava a escritores de peso como José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado.
    Foi a única mulher a fazer parte da geração de trinta, com o romance regional, de repercussão nacional e circulação universal. O Quinze foi o seu romance de estreia, publicado em Fortaleza, em 1930, e causou tremenda repercussão, pois se tratava de um livro escrito por uma mulher, produzindo agitação e até certa desconfiança nos espíritos da época.
    O título se refere à maior seca de 1915, vivida pela escritora em sua infância. Divide-se em dois planos que apresentam respectivamente, o vaqueiro Chico Bento e sua família e a relação afetiva de Vicente, rude proprietário e criador de gado com sua prima Conceição, culta e professora, leitora de vários livros de tendências feministas e socialistas, o que causa estranheza a sua avó, representante das velhas tradições, com quem ela passava férias, na fazenda da família, no Logradouro, perto do Quixadá. Com 22 anos, não pensava em casar, mas sempre se sentia atraída pelo primo Vicente, homem rude e até mesmo selvagem, dono de muitas reses.
    Com o advento da seca, a família de Dona Inácia decide ir para a cidade. Conceição trabalha agora no campo de concentração onde ficavam alojados os retirantes e percebe a diferença de vida entre ela e seu primo e a quase impossibilidade de comunicação. A seca chega ao fim e eles voltam para o Logradouro.
    A parte mais importante do livro apresenta a marcha trágica do vaqueiro Chico Bento com a mulher e cinco filhos. É forçado a abandonar a fazenda onde trabalhava, com o intuito de sobreviver no Norte, extraindo borracha. No percurso, Josias, o filho mais novo, morre envenenado por mandioca crua e fica enterrado ali mesmo, na estrada, o que causa profunda dor à família. Outra cena trágica é o abate de uma cabra cujo dono aparece chamando Chico Bento de ladrão. Toma-lhe o animal, dando-lhe apenas as tripas para saciar a fome. Mais adiante Chico Bento dá falta do filho mais velho, Pedro, mas chegando ao Aracape, toma conhecimento da fuga do garoto com comboieiros de cachaça. Ao chegarem ao campo de concentração, são reconhecidos por Conceição, que emprega Chico Bento, adotando um de seus filhos, e lhe concede as passagens de trem para S. Paulo.
    A obra é vista agora de uma perspectiva que harmoniza o social e o psicológico sem perder o foco de entrada para temas políticos da maior importância na época, entre eles o da afirmação social da mulher no caso, Conceição, naquele contexto difícil e adverso. Sob este aspecto a protagonista em última instância investiga e interroga o seu destino, e a verdade é que, visto a partir dele, o drama social dos flagelados parece diluir-se no pano de fundo da paisagem calcinada que a linguagem da escritora recupera sob um ângulo lírico e alusivo, e até mesmo corrosivo.
    O Quinze é um romance orgânico, apresenta características modernistas e neo-realistas, uma vez que se enquadra nas normas vigentes da geração de 30 a 45, cuja atenção se volta para o Nordeste. É ficção em prosa regionalista, obra de caráter social, apresentando a saga dos flagelados cearenses representantes da desastrosa seca de 1915. Os personagens que compõem o cenário são: Chico Bento e sua família, Conceição, Vicente, Mãe Nácia, os quais respondem pela sociedade do Logradouro e do Quixadá, interior do Ceará, com suas crenças, costumes e tradições.
    O caráter telúrico deste livro explora as tradições do Ceará como as cantigas próprias do vaqueiro na condução do gado, as rezas da benzedeiras e outros aspectos folclóricos.
    A temática regionalista evidencia a seca cearense, tão vil e voraz, esterilizando o homem e a terra, regidos pelos fenômenos meteorológicos, tornando-os impotentes, numa terra desolada e árida, como: “as árvores apresentam-se negras e agressivas, tudo isso dentro de um silêncio fino do ar que é sempre o mesmo, além da morna correnteza que levanta e passa silenciosa como um sopro de morte na região tão seca [...]” (p.65-66).
    É este livro uma obra de denúncia social, fato comprovado por vários episódios e pela descrição do espaço. O caso das passagens concedidas aos retirantes pelo governo confirma o caráter realista da obra. Eles deixam o Ceará e saem em busca de oportunidades em outras regiões em desenvolvimento, no caso, São Paulo e o Amazonas. Chico Bento se revolta com a atitude do governo, fingindo ajudar os pobres, o que não era verdade porque não os ajudava “nem a morrer...” (p.33). É o fato que motivava os retirantes a saírem do Logradouro ou do Quixadá até a capital Fortaleza, em busca de sobrevivência.
    A grande personagem merecedora de atenção neste romance é a Seca, a verdadeira protagonista, responsável pela peripécia de O Quinze. Basta observar a cena descrita no episódio da novilha acometida de mal dos chifres e aproveitada como alimento pelos retirantes: “a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo...”(p.42-43) Nesta passagem Rachel de Queiroz apresenta os retirantes animalizados, disputando, em condição de igualdade, a carniça com os urubus para saciar a maior de todas as misérias provocadas por ela, a fome. Surge então a figura de Chico Bento com impressionante generosidade ao dividir os alimentos que ainda lhe restavam, salvando os conterrâneos de comerem um animal já em estado de putrefação. Atitude típica do sertanejo nordestino, que mesmo diante do flagelo acode o próximo, num gesto sublime.
    Cordulina, antes gorda e agora tão magra! Diante dos olhos do marido, esquelética, sem forças, tísica! As crianças que antes brigavam, corriam, agora, mal respiram lentamente. Mas o interessante é que, mesmo diante da miséria que os consome, Chico ainda demonstra atitude de compaixão, heroísmo e responsabilidade com a família.
    A segunda parte do livro enfatiza o romance de Vicente com Conceição. A autora recorre a metáforas e personificações ao tecer comparações de Vicente com elementos da natureza. É descrito como uma bela paisagem, exibindo beleza e cor, mas sem poder compartilhar profundidades literárias ou filosóficas com a prima enamorada. Acredita que a diferença cultural entre os dois é forte o bastante, capaz de destruir o sentimento que sentem um pelo outro. A autora, de forma implícita, mostra o preconceito da sociedade urbana em relação à cultura do homem rural, por meio do julgamento etnocêntrico de Conceição em condenar a sua felicidade porque o seu nível cultural é “superior” ao do rapaz campesino, apesar de ser bom, rico, viril, comprometido com os seus, e “inferior”, não economicamente, mas desprovido do conhecimento teórico, científico e literário. Isto Vicente não possuía, o que para a normalista neutralizava todas as demais virtudes do pretendente. Assim a moça idealiza o seu relacionamento com o primo no plano da sensibilidade e do imaginário, sem carícias nem beijos, e tal romance inicia-se e finaliza por uma impressão. Conceição admite a condição submissa da mulher. Supõe-se que a autora chame a atenção para qual seria o papel da mulher diante desta nova sociedade brasileira. Propositadamente coloca Conceição e Vicente em igual condição por não abrir mão da terra e Conceição por privilegiar a sua liberdade. Deduz-se então que ela foi criada pela autora com o propósito de quebrar paradigmas até então possíveis só ao homem. Órfã, criada pela avó e estudada na capital; trabalha, adota filho do retirante, dispensa companhia ao andar pela cidade, enfrenta as mazelas do campo de concentração em nome da solidariedade, e, ao invés de sofrer preconceito, julga e descarta Vicente por não ser compatível com seu nível intelectual.
    Quanto ao estilo, a autora se vale da linguagem impessoal, introspectiva, livre de adornos lingüísticos exagerados, seca como o espaço geográfico e próximo da linguagem oral do Ceará. Utiliza-se de períodos curtos, do ponto de interrogação, facilitando a reflexão do leitor. O diálogo é reticenciado para melhor percepção do não dito pela escritora. Utiliza o recurso da pontuação, marcando a continuidade e delimitando a fala dos interlocutores com o travessão e exclamações. As aliterações e assonâncias são bastante expressivas, registrando os elementos fonéticos, simbólicos, morfossintáticos, regionalistas e lexicais que identificam a variedade linguística regional.
    Rachel não abre mão do veio fecundo da matéria oral folclórica brasileira na ficção. É a oralidade que fornece tecido ao texto, numa prosa viva, comovente, tecendo o seu relato em duas linhas de força: a marcha do retirante e sua família, sonhando chegar ao Amazonas e a história da mocinha que lê romances e teóricos franceses, além de sonhar com um belo moço rude.
    Nesse cenário inclemente e num quadro social deplorável, que iguala homens e bichos, sobreviver até a redenção da chuva é uma questão de sorte. Em síntese, a temática deste romance tem caráter documental e sociológico e abrange os problemas condicionados pela seca de forma global, os quais são e continuam atuais, possibilitando várias análises.

    Dados Bibliográficos: QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 86. Ed. José Olympio, 2009.

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